8.3.07

Mulheres, andróginos, esfinges.

Hoje é o tal Dia da Mulher. Eu nem ia lembrando, pra mim não tem essa de “dia de alguma coisa”, mas vi em algum lugar e aí deu vontade de escrever, escolher uma imagem, essas gracinhas. A imagem é da Patti Smith e ao fim eu explico porque – como se precisasse.

Para mim é estranho perceber que a diferença de gênero ainda define tantas idéias e comportamentos. Não faz mais sentido: é um hábito arraigado. Não acredito que corpo, hormônios e emoções ajam com total independência em relação aos pensamentos, seja numa mulher ou num homem: há um feed-back constante se você é um animalzinho racional, e não um animalzinho que deveria ser razoavelmente racional mas acaba sendo mais estúpido do que os outros animaizinhos que seguem apenas a bela sabedoria de seus instintos. Não que tenhamos o controle racional sobre toda a imensidão do resto de nós mesmos: ao contrário, o descontrole ou o controle precário é a regra, para homens e mulheres. Mas se você não é um idiota, você pensa sobre o seu descontrole, analisa, busca entender, tira algo de novo e vivo dali. Mesmo que o descontrole seja inevitável.

Há séculos, dizem as lendas da sociedade masculina que tal descontrole é maior nas mulheres. Um erro: pois esse descontrole é maior nos que sofrem, seja qual for o gênero, origem, idade, etnia, cultura. E certo é que a privação de liberdade e autonomia é um dos maiores sofrimentos impostos a um ser humano: vide cadeias, senzalas, asilos, campos de concentração e crises de abstinência química. Vide o que foi – e muitas vezes ainda é – a vida da mulher.

A partir do momento em que as mulheres começam a deixar de ser escravas e os homens deixam de ser seus senhores, o descontrole e o sofrimento passa a atingir os dois de formas muito parecidas: a mulher que já pode viver com alguma liberdade (porque ninguém é totalmente livre) e o homem que fica inseguro sem suas garantias de senhor equiparam-se nessa corda-bamba, nesse fio-da-navalha. Sofrem de depressão e histeria, vivem euforias e epifanias, aterrorizam-se e ficam maravilhados diante da vida e da morte. Já vi mulheres seguirem valentes por onde homens estancaram, tremeram, entortaram suas mãos e tiveram falta de ar sem possuírem nenhuma doença, na mais clássica demonstração dessa tal de histeria... masculina. Ou melhor: histeria humana, demasiado humana.

Diz-se também que as mulheres são exímias “catadoras de cabelo em ovo”, procurando problemas e questões onde eles não existem. Aí vem um clichê que se aplica bem: não é porque você não vê que não existe. Vai ver não é um ovo, você é que está enxergando um ovo onde a mulher ao seu lado está vendo uma bela cabecinha que, de fato, é cabeluda.

E você ali, agindo feito um animalzinho idiota ao não perceber as relações entre determinadas idéias e emoções. E é aí que vêm até os cientistas admitirem que a mulher tem maior habilidade de comunicação entres os hemisférios cerebrais, ou seja: sabe melhor identificar, processar racionalmente e expressar através da linguagem as emoções, as sensações e fatos relacionados a eles. Ou seja: o cabelo está lá, mesmo que você seja incapaz de percebê-lo e explicá-lo. Curioso é que também já vi homens plantando peruca de Slash no mais perfeito dos ovos: e como em geral os homens ainda não têm habilidade nesse assunto, ficou bem claro que era um ovo com uma peruca horrível... até que se prove o contrário, com um maior esforço de comunicação entre os dois lados da cabecinha masculina em questão, tenha ela cabelos ou seja semelhante a um ovo.

O que tenho a dizer, no fim das contas, sobre o “Dia da Mulher”, é que deveríamos ser, todos, mulheres e homens, mais ANDRÓGINOS. Não em nossos corpos: a androginia física é o de menos, pode expressar lindamente algo mais... ou nem tanto. A orientação sexual também não tem nada a ver com essa história: oriente-se para onde seu desejo se inclinar e seja o mais feliz possível, é só o que se pode dizer de sensato, no fim das contas. O que importa é a “androginia da alma”, na falta de expressão melhor que “alma” para definir o todo complexo que cada um é, com seus pensamentos e sentimentos insondáveis.

Se na época das cavernas era necessário ao homem ser mais prático, direto e agressivo para caçar e às mulheres era necessário maior docilidade e habilidade na comunicação para educar a prole, sorria: você está no século XXI e nada disso é imperativo. Não precisamos ser prisioneiros da pré-história, podemos dar um passo a frente: agora outras características definem quem se adapta melhor ao meio, insistir no “modelo das cavernas” é tolice. Sejamos mais andróginos: a androginia de se auto-educar e permitir-se conhecer melhor, sem acreditar em barreiras que já foram necessidade mas se tornaram um estorvo; desafiando essas barreiras e ultrapassando-as, botando os dois lados do cérebro para brincarem juntos, o coração mais amigo da cabeça, a cabeça mais amiga do corpo, a imaginação mais solta, o espírito mais livre, o corpo também. Sejamos andróginos com nossos quadris de matronas ou nossas barbas crescidas, com nossos peitos grandes ou nossos peitorais, tenhamos essa liberdade – ela nos é permitida e realmente depende apenas de nós mesmos. Que um dia caiam todas a burkas e estereótipos, todas as anorexias e bulimias, toda estupidez e sofrimento desnecessário: já basta a morte, porque inventar mais?

Depois de falar em “humano, demasiado humano” e “espírito livre” não tem como não lembrar que meu querido Nietzsche era um tremendo misógino. Afinal, devia ser difícílimo para um homem inteligente como ele não ser misógino e achar as mulheres do século XIX insuportáveis. Curioso é que ele, tão hábil e genial ao perceber as construções que a cultura ocidental acatava como “verdade”, parece não ter percebido que aquela “mulher” era mais uma construção masculina; não era “a” mulher, não limitava as possibilidades de ser mulher. Triste é que tantas mulheres tenham voltado a (ou nunca tenham abandonado) esse modelo fraco da sofredora frívola, só que com roupa nova e neo-liberal; porque é mais fácil, por costume, porque temem não ser amadas. ACORDA, mulherada!

Mais-ou-menos na mesma época outro gênio, em meio à sua adolescência turbulenta, anunciava: “Quando tiver sido quebrada a infinita servidão da mulher, quando ela viver por ela e para ela, o homem – até aqui abominável – a demitirá, ela também será poeta! A mulher descobrirá o desconhecido! Seus mundos de idéias serão diferentes dos nossos? Ela descobrirá coisas absurdas, insondáveis, repugnantes, deliciosas; nós as tomaremos, nós as compreenderemos.” Patti Smith, fã de Rimbaud, é uma das que cumpre a profecia do vidente com perfeição. Compreendam, ou serão devorados.