24.10.05

Vou-me embora de Patópolis que aqui eu sou inimiga do Rei.

As duas campanhas foram ridículas: nenhuma mostrava as fontes de todos os dados que apresentava, pois as duas tinham furos que não queriam expor. A do "sim" perdeu tempo demais com textos vagos, presepada de ator e xaropada de vestir de branco e abraçar Lagoa, ninguém mais atura essa babaquice. Quando apresentou argumentos um pouco melhores, já estava em cima da hora. Teve gente que votou não por conta disso, mas a campanha do "não" foi ainda mais patética, parecia discurso de velho esclerosado; só que apelou para o medo e nego caiu, assim como caiu até na história do traficante que não existe – a qual só foi esclarecida aos quarenta minutos do segundo tempo e, mesmo assim, muita gente não ficou sabendo ou se negou a acreditar que foi feita de otária. A campanha do "não" ainda tinha a seu lado a impopularidade do governo e do próprio referendo em si, ninguém estava a fim de votar.

A única opção inteligente parecia o nulo. Boa opção. Mas achei que o “não” estava fazendo uma campanha tão sinistra que merecia ser combatido – embora já soubesse que não ia adiantar. “Tomar partido é humano”. E o “não” ganhou, óbvio. Achei que isso não fosse ter maior significado, mas essa conclusão foi superficial e precipitada.

Percebi que esse referendo que eu nem julgava tão relevante pode ser mais importante do que parece. Está traçado um perfil da maioria da sociedade brasileira: e é um perfil fraco, medroso e conservador. As armas são só um detalhe, considerando que a maioria nunca vai nem ver uma arma na vida – talvez, só na hora da morte. A questão é quais os argumentos que mais convenceram, que vozes foram mais ouvidas, ao que se deu crédito.

Começo a sentir um forte cheiro de merda vindo das urnas eletrônicas. Dessas de ontem e das de 2006. Segundo os resultados de ontem, confirmamos: o Brasil assume seu lado reacionário, burro, cagão, mesquinho e medíocre. E não porque o brasileiro quer ter o direito imbecil de se armar, mas pelas coisas nas quais ele acredita. Qualquer zé acha que é um alvo invejado e morre de medo de perder a sua TV de 14 polegadas comprada em 12x nas Casas Bahia. Qualquer funcionário público acomodado e sem atitude acha que, se puder ter uma arma, vai defender seus sagrados bens, a certeza da sua "macheza" e a integridade da sua família - nessa ordem mesmo. Qualquer mané acha que pode ser mais malandro que o malandro de carteirinha assinada na escola do crime. Qualquer um enfurnado no seu apartamentinho fuleiro acha que pode acontecer uma "revolução dos traficantes que vão invadir o asfalto" e que, com a sua pistolinha, vai poder se defender de bazucas, AR-15s e quetais. Boa parte acredita que vai poder se defender de um "golpe de estado" com o seu 38. Uau, nego se garante mesmo, hein? O coelhinho da Páscoa mandou lembranças e disse que Papai Noel vai bem, obrigado.

O brasileiro acredita. Acredita em "homens de bem", em bandidos e mocinhos, em bang-bang. Acredita que uma arma pode salvar vidas, acredita em piadas de internet com traficantes chamados Xaxim, acredita que é o fodão do Bairro Peixoto quando está quase se cagando de medo, com o cu apertadinho. O brasileiro acredita no medo e tem medo de mudanças. É retrógrado. É pobre e tem medo dos mais pobres: pobreza de espírito. Quem tem cu tem medo e resolvemos declarar logo que somos uns cuzões. Um país de Reginas Duarte. “Eu tenho medo, minha gente!”. Argh. Sai Regina, xô!

Foi uma grande pesquisa "de mercado" esse referendo - e foi num momento de péssima popularidade do governo, que se fudeu. Também, quem mandou cometer o mesmo erro que o cidadão médio-abaixo-da-média: achar que ia ser mais malandro que os malandros profissionais, mais malandro que os bandidos engravatados e venais que há tantos anos “tiravam o seu” lá no Planalto... Se deu mal, PT. Foi jogar o jogo sujo dos antigos adversários achando que estava sendo esperto mas eles eram mais experientes e te passaram a perna. Nunca deixaram de ser adversários. Dançaram alguns peões, mas e daí, PT PaTo?! Tua Rainha tá em cheque e tu com fama de passar cheque. Muita gente votou "não" por conta disso, foi um não ao governo, um não de revolta. Menos mal. Mas irresponsável.

Bem, mas o que os carinhas que visam o poder político a qualquer custo podem fazer a partir desse resultado? O fato é que quem quiser se eleger a qualquer coisa, a qualquer preço, já sabe agora muito bem pra que tipo de "lógica" apelar: a que instiga o medo e o sentimento de posse mais primitivo, a do não-racional, da paranóia e conspiração, do obscurantismo intelectual, da barbárie, do fascismo latente. “Apela que funciona, não se preocupe com a veracidade dos fatos, se você repetir mil vezes que 2+2=5, eles vão acreditar”. É só vender a alma, vai.

Em uma das conversas que tive sobre o referendo, com uma pessoa que sempre foi “de esquerda”, ouvi as seguintes pérolas: “A campanha do sim é apenas uma farsa que esconde interesses norte-americanos, trata-se de uma questão econômica, de não entregar todo o mercado de armas curtas para os EUA e Israel”. Não sei porque o termo “teoria conspiratória anti-sionista” apareceu em minha cabeça, alguém sabe me dizer porque?! Ha-ha-ha, nós somos altamente competitivos neste mercado e lucramos enormemente com as armas que os gringos compram do Brasil para matar uns aos outros – e não podemos perder isso! Que lógica, hein? Sensacional. Nacionalismo frio, puro, simples e tacanho. Total desprezo pelo humano, estamos falando em números. Escuto a segunda pérola: “sim, é nas questões nacionalistas que as esquerdas e as direitas se unem, que o trabalhador vota junto com o patrão”. Calafrios históricos ao lembrar do termo “nacional-socialismo”.

Eu tenho medo também – mas não é de armas, de bandidos ou dos mais pobres. Eu tenho medo do homem rebanho, do boizinho magro que se sente Taurus quando junto a muitos de seus iguais. Porque não há ave rara, bicho selvagem e ser racional que resista a um rebanho em marcha atrás de um pastor surtado. Os que não estão na marcha são pisoteados se não conseguirem escapar a tempo. O homem rebanho, que sozinho é passivo e baço, rejubila-se na multidão cinzenta ao pisar o que lhe é estranho, incompreensível, ameaçador.

Pode não dar em nada, pode continuar tudo a lesma lerda, afinal estamos no país da pizza; e, diante das atuais perspectivas, lesma lerda já é lucro. Porque pode dar merda. E das brabas. Eleições ano que vem. Cassandra cochicha aqui no meu ouvido: "Comece a se preparar para mala e passaporte. E boa sorte."

Quando se vive em Patópolis, é melhor voar. Porque a lógica dos patos é patológica. O medo reina. Vou-me embora de Patópolis que aqui eu sou inimiga do Rei. Mas... para onde eu vou? Pára o mundo que eu quero descer. É melhor ter o Guia do Mochileiro das Galáxias em mãos.

“Este é um tempo de trevas, meu Pai. Mas é certo que amanhece."